domingo, 30 de março de 2014

Red Lips

Era domingo, mas ela acordou com gosto de segunda, despertou cedo, como só consegue pela obrigação em início de semana. Levantou devagar, para não acordá-lo. 
Ele acordou com o cheiro de café invadindo o quarto. A visão ao abrir os olhos foi de Tatá de costas para a cama, nua, com uma das mãos ocupada com uma caneca de café e a outra levando um cigarro a boca. Não dava pra ver, mas imaginou aqueles olhos distantes, perdidos no que havia além da janela.
So fragile yet so devious.
 Mário ia perguntar se ela fumava, mas resolveu pular o óbvio.  Então, levantou e, mesmo não suportando o cheiro daquele cigarro barato, a abraçou por trás e falou - divertido e sensual, como sempre - ao ouvido direito dela:
- É a primeira pessoa que vejo lembrar de passar batom e esquecer de vestir a roupa.
E ela virou séria, deixou a caneca e o cigarro na janela, olhou bem no fundo dos olhos, enquanto passava as mãos pelas costas dele, parou-as nos quadris e o puxou para mais próximo dela, fazendo-o pressioná-la contra a parede abaixo da janela e falou:
 - Não há como se despir do que somos.  E não, eu não fumo. Não sempre. Mas precisei mudar as cores dos carros que passavam embaixo do viaduto e dos prédios ao fundo.  A nicotina é sempre uma boa aliada quando a imaginação me abandona.
Ele sorriu, de uma forma que ela nunca havia visto alguém sorrir antes e falou: 
- Você fica linda de vermelho! 
Ele sabia que o vermelho ia bem além do batom, então, resolveu beijá-la. Havia uma necessidade latente de vê-la despida por completo.
 Súbito. A imaginação voltou. E, claro, os cigarros restantes não foram mais necessários.
(...)
Havia um silêncio que não constrangia e cheiro de café se espalhou pelo restante da casa e o batom, pelo corpo.
(...)
- Você é doida mesmo.
- Não! Só sei voar. Aliás, sabemos. Vem comigo?






"Arranca metade do meu corpo, 
do meu coração, dos meus sonhos. 
Tira um pedaço de mim, qualquer 
coisa que me desfaça. Me recria, 
porque eu não suporto mais pertencer
a tudo, mas não caber em lugar algum."
 (José Saramago)